Onde está o cidadão de bem na democracia brasileira? Ou: quando a barbárie é modelo de civilização

Pensemos em duas situações hipotéticas. Na primeira, Tício – não é sempre ele? – agride Mélvio e toma-lhe um relógio. Em seguida, Mélvio reúne-se com Ticiano e Caio e, dois dias depois, armam uma emboscada para Tício: agridem-no, a socos e pontapés, e em seguida amarram-no a um poste. Na segunda situação, Cassiano furta a carteira de Júlia no centro de São Paulo. Júlia faz a denúncia e, no dia seguinte, a polícia algema João, que corresponde à descrição do suspeito tal como apontada por Júlia, e o coloca no camburão. Ao chegar à delegacia, “percebe-se” que João está morto com uma bala na cabeça. O perito diz que foi suicídio.

Os casos são narrados no telejornal por uma âncora que faz muito sucesso por suas posições duras.  Quanto ao primeiro caso, sustenta que a atitude de Ticiano e Caio era justificável, já que eles são cidadãos de bem que resolveram o problema em virtude das falhas institucionais. No segundo caso, a âncora mantém o discurso: a morte de João cortou o mal pela raiz. Sim, os casos são hipotéticos, embora parecidos com alguns eventos ocorridos nas últimas semanas. Compreenda-os tal como descritos.

A essa altura, você deve estar estranhando: afinal, João não cometeu crime algum. No segundo exemplo hipotético, quem efetivamente praticou o furto foi Cassiano. Mas a âncora, que não sabia dessa circunstância, exaltou a ação policial e insuflou a opinião pública a dar suporte à ação institucional. No Facebook, pulularam moções de apoio à jornalista. Muitos disseram que foi “bem feito”, porque “bandido bom é bandido morto”. Algumas vozes resistiram ao movimento, alegando que os direitos humanos de João foram violados pela polícia, e até desconfiaram  do laudo pericial que considerara a hipótese de suicídio – afinal, não parece ser tão provável que um preso, em um camburão, tenha acesso a uma arma de fogo. Mas não é esse o ponto. Em reação a essas vozes, os mais exaltados passam a sustentar que  os direitos humanos só protegem os bandidos.

Semanas depois, descobre-se que o responsável pelo furto da carteira de Júlia, na verdade, fora Cassiano. A âncora silencia. Instigada nas redes sociais, solta uma tímida nota afirmando que erros acontecem, mas que a polícia deve agir com dureza para combater o crime. Não volta atrás.

A mesma reação ocorre no primeiro caso. Mas (digamos) Tício era efetivamente o responsável pelo crime. A reação da jornalista? A mesma. Bem feito. Os cidadãos de bem venceram os cidadãos do mal.  A reação do “povo”? A mesma! Muitos apóiam a vingança e rechaçam as vozes que ainda ousam falar em “direitos humanos”.

***

Evidentemente, construí os dois casos hipoteticamente, porque nem todos os elementos são reais. Mas o que está em jogo, aqui, não é uma simples “experiência de pensamento”. É, sim, o sinal de alerta de um discurso sinistro que opõe cidadãos de bem a cidadãos do mal. Os primeiros deveriam ter todos os direitos assegurados. Os últimos, nenhum.

Se você prestou atenção nos casos, já deve ter percebido o primeiro equívoco dessa lógica. João pagou com a vida pelo resultado necessário dessa lógica. “Foi suicidado”. Como era um “cidadão do mal”, não teve direito a contraditório. A devido processo legal. A ser julgado. A ser preso e eventualmente condenado de acordo com a legislação processual penal. Que só vale pros cidadãos de bem. Peraí: como cidadãos de bem não cometem crimes (por definição), quando a legislação processual penal deve ser aplicada? Nunca — já que a lógica é a de que o direito a um devido processo legal – direito humano, direito fundamental – só pode ser aplicado às pessoas de bem, e nunca às pessoas do mal. Mas… João, que, até onde se sabe, era um cidadão de bem, foi confundido com um “cidadão do mal” e, por essa simples razão, perdeu o direito de ser julgado de acordo com a lei.

Não se enfadonhe com esse discurso. Não faz sentido mesmo. Mas é a consequência lógica do discurso de que os “direitos humanos só se aplicam a bandidos”. Paradoxalmente, o que essa lógica quer dizer, na verdade, é o seguinte: que os direitos humanos não devem se aplicar aos “bandidos” [os cidadãos do mal].  Mas como saber quem é cidadão do mal ou cidadão de bem?

Nos últimos 300 anos, a teoria jurídica caminhou no sentido de que [1] só dá pra saber quem cometeu ou não um crime depois de um processo que siga regras mínimas de justiça. Um juiz imparcial (que não seja amiguinho das partes, por exemplo) deve julgar o caso, e todo mundo tem que ter o direito de produzir provas e apresentar seus argumentos. Depois disso tudo, o juiz decide. E, depois, as partes têm direito de recorrer – entre outras coisas, pra saber se essas regras mínimas de justiça foram observadas. Tudo pra garantir o direito de um “cidadão de bem” não ir pra cadeia porque foi condenado prematuramente pela opinião pública. Parece uma burocracia danada, mas não é. Antes desse tipo de procedimento existir, você (é, você mesmo, cidadão de bem) podia ser condenado só por ter sido denunciado daquele vizinho chato com quem você tinha confusão de vez em quando. É por isso que é um erro não apenas João ter sido “suicidado”, mas também Tício ter sido amarrado no poste. Nenhum dos dois foi julgado ou teve qualquer direito de defesa respeitado. E, com isso, as chances de um dos dois sofrerem uma penalidade injusta aumentam exponencialmente.

Além disso, [2] a teoria jurídica também parou de dividir as pessoas entre cidadãos de bem e cidadãos do mal. Ou seja, se você acredita nessa distinção, está mais ou menos no século XVII.

Por que a teoria jurídica parou de fazer isso em qualquer lugar que mereça ser chamado de democrático? Porque o direito de uma sociedade democrática se separou da moral e da religião. Ou seja, você pode até ir pro inferno porque é um sujeito malvado do ponto de vista da religião, mas se não cometeu uma infração legal, não vai pra cadeia. Isso é bom ou ruim? Considerando que há tantas religiões e doutrinas morais por aí, e que a chance de ser aplicado o critério de qualquer uma delas arbitrariamente existiria, parece racional não aceitar que qualquer uma delas tenha preferência, concorda?

Se você discorda, pense no seguinte: imagine que a sua religião ou sua perspectiva moral não seja a adotada pelo Estado. Só por isso, você teria que adotar para a sua vida os critérios da religião/doutrina moral da “maioria”, ou então entraria numa fria só por pensar diferente. Só por pensar diferente, aliás, você seria enquadrado como “cidadão do mal”. E não teria direito humano nenhum, a não ser o de ser suicidado no camburão. No nosso Brasilzão atrasado, a gente ainda hoje fala em coisas como “moral e bons costumes”. No fundo, isso aí é resquício de uma época em que se dividiam os cidadãos entre os “de bem” e os bandidos. Bandido não respeita a moral e os bons costumes. Mas… o que é moral e bons costumes quando ninguém se entende a respeito dos critérios a serem utilizados para estabelecer uma definição?  Por conta disso, a teoria jurídica deu um passo atrás, retirou a religião e a moral da parada e passou a aplicar punições apenas com base em critérios jurídicos fundamentados na violação de direitos.

Direitos humanos não são “coisa” de bandido. São direitos de todos. Até dos bandidos, mas não especialmente deles. É por isso que, quem defende os direitos humanos, sustenta que Tício e João foram tratados injustamente. Tício foi foi amarrado no poste sem ser julgado – e eventualmente punido – conforme a legislação. E, na verdade, se ele é um “criminoso” por ter furtado o relógio de Mélvio,  Ticiano e Caio também são “criminosos” porque violaram o direito dele de ser submetido a um julgamento justo. Da mesma forma, os policiais, ao não darem a João a proteção necessária para que ele não “fosse suicidado” quando estava em custódia do Estado, foram também “criminosos”. Entre aspas, porque todos eles  deveriam ser submetidos a julgamento antes de serem condenados.

Ao distinguir entre bandidos e cidadãos de bem, os moralistas de plantão posam de civilizados, “pessoas de bem”, respeitáveis e defensoras dos bons costumes. Mas são verdadeiros bárbaros que desejam apenas o retorno das vendettas comuns da máfia, em que todos se acham no direito de julgar os demais e levam a cabo o resultado de seus julgamentos. Pergunto aos “cidadãos de bem”: vocês realmente gostariam de morar em um lugar assim?

About Fábio Almeida
Fábio P. L. Almeida é Mestre em Direito, Estado e Constituição (2007), em Lógica, Filosofia da Linguagem e Teoria da Mente (2011) e Doutorando em Direito (desde 2012), pela Universidade de Brasília. Visiting Researcher na Universidade Harvard (2013). Tem interesse em teoria dos direitos fundamentais e em teoria do direito, com ênfase na conexão entre direito e economia, biologia e sociologia.

View all post by Fábio Almeida »

3 Comentários
  1. Renato

    fevereiro 22, 2014

    Ninguem lê o que V.Exa. escreve? Tadinho…

  2. ALEXANDRE

    fevereiro 25, 2014

    EU LEIO MUITO BOM OS ARTIGOS QUE LI, POR IR CONTRA OS INTERESSES DO ESTADO TALVEZ NEM TODOS GOSTAM

  3. Ana Luísa

    abril 22, 2014

    Gostei. Fez-me raciocinar e entender, de forma ilustrada, talvez lúdica, o problema crônico do meu país, onde, se qualquer criança capaz, tiver acesso a este texto, entenderá que está tudo errado… e os adultos estão inertes. Melhor ser criança.

Deixe uma resposta