Imparcialidade em xeque: política, impeachment e comportamento judicial no STF

Em meio à expectativa e, em seguida, festejada indicação do advogado e professor Luiz Edson Fachin para ocupar a vaga deixada por Joaquim Barbosa no STF, algumas notícias interessantes sobre dois ministros da Corte foram veiculadas, embora não tenham recebido o mesmo destaque dos meios de comunicação.

O caso Gilmar Mendes

A primeira delas não é novidade: o aniversário de um ano do pedido de vista feito por Gilmar Mendes na ADI 4.650/DF. Proposta pela OAB contra o financiamento de campanhas eleitorais e partidos politicos por pessoas jurídicas, o julgamento foi interrompido em 02 de abril de 2014, quando o placar de 6 x 1 já indicava vitória da tese da inconstitucionalidade das doações feitas por empresas. O movimento batizado de “devolve Gilmar” ganhou nos últimos meses um massivo apoio de juristas, movimentos sociais e parte da imprensa. Em apenas uma iniciativa divulgada pela comunidade Avaaz, até a data de hoje, quase 244 mil pessoas já tinham assinado petição on line exigindo a devolução dos autos para que o julgamento seja retomado.

Sob o fogo cruzado das inúmeras críticas quanto à demora e o pedido de parlamentares, inclusive do presidente da Câmara Eduardo Cunha, para que mantenha parado o julgamento e, consequentemente, as regras atuais do sistema de financiamento da política no país, Gilmar Mendes segue pressionado, porém firme em não devolver a questão ao plenário do Tribunal. Contudo, se até agora o ministro não se pronunciou sobre o tema nos autos, através de declarações suas reproduzidas pela imprensa já é possível conhecer qual a sua posição: é assunto para definição do Congresso. Ao redirecionar as críticas à OAB, Mendes disse: “Veja a proposta que veio para cá. Dizia que declara inconstitucional doações de pessoas jurídicas, fixa um teto e deixa todo mundo contribuir da mesma forma. (…) Não sei como essa gente teve coragem de propor isso. As pessoas têm direito de fazer o que elas quiserem considerando o livre arbítrio. Elas só não podem fazer a gente de bobo”.

Pois bem, realmente se estabeleceu uma situação interessante: o julgador não decide, mas dá palpites sobre disponibilidade do direito de ação do autor. Nessa linha, além de uma análise sobre a efetividade do direito fundamental à razoável duração do processo, as afirmações poderiam provocar bons comentários dos processualistas sobre o princípio do dispositivo, segundo o qual somente às partes cabe avaliar o uso ou não do direito de ação, e ainda do princípio da cooperação, cuja marca é o diálogo entre juiz e as partes com objetivos comuns – a qualificação do contraditório e o desfecho do processo. Bem, seja por qualquer desses ângulos, o caso já desponta com um magnífico contra-exemplo.

A questão poderia ser compreendida como apenas mais uma rotineira violação ao artigo 134 do Regimento Interno da Corte, que estabelece o prazo de até duas sessões ordinárias para que o processo seja devolvido após o pedido de vista. Porém, diante da inegável importância do tema para o sistema político e a flagrante contradição do ministro Gilmar Mendes ao dizer que a questão é assunto para o Congresso, quando o próprio votou em diversos outros casos[1] da “mini-reforma política” feita pelo STF, as afirmações soam como o bater de panelas enquanto a cidadania espera por uma bossa nova.

Sobre a pressão que tem recebido, o ministro declarou: “Sou blindado. Não estou preocupado com a opinião pública. O tribunal não servirá de nada se não tiver um juiz que tenha coragem de dar um habeas corpus, de pedir vista”. Também à mídia, Mendes tem revelado sua preocupação com o desfecho do caso – para ele, vedar o financiamento privado sem antes definir se o modelo eleitoral será majoritário, proporcional ou em lista é contraditório. E lembrou que, no caso, é mais produtivo que o STF “calce as sandálias da humildade”.

Independentemente das razões que levam o ministro a travar o julgamento da ADI 4.650/DF, o atraso na devolução dos autos foi tomado pela organização política Brigadas Populares como motivação do pedido de impeachment do ministro. Segundo a denúncia apresentada à Presidência do Senado Federal, o fundamento está na prática de crime de responsabilidade (art. 39, da Lei 1.079/50) e no descumprimento de deveres da magistratura, conforme previsões da Loman[2].

Essa não é a primeira vez que o Senado recebe um pedido de impeachment contra Gilmar Mendes. Em maio de 2011, o advogado Alberto de Oliveira Piovesan apresentou denúncia baseada nas relações pessoais entre o ministro e o advogado Sérgio Bermudes, afirmando que aquele não se declarava impedido de julgar ações nas quais o advogado, ou um de seus subordinados, exercia função de defesa. O pedido foi arquivado por decisão da Presidência do Senado, contra a qual o advogado impetrou mandado de segurança no STF. Na Corte, o arquivamento foi mantido pela votação unânime dos ministros. Em outra oportunidade, cerca de três anos antes, um grupo de procuradores da República articulou a possibilidade de também pedir o impeachment de Mendes, logo após as sucessivas decisões de concessão liminar nos habeas corpus ajuizados por Daniel Dantas, no curso da operação Satiagraha da polícia federal, em julho de 2008. Embora o pedido não tenha sido apresentado, o próprio Presidente do Senado à época, Garibaldi Alves, adiantou que ele dificilmente prosperaria na casa legislativa.

O caso Dias Toffoli

Também relacionada a pedido de impeachment, a segunda notícia foi a apresentação de denúncia ao Senado contra o ministro Dias Toffoli, em 09/04/2015, igualmente fundada em crime de responsabilidade. Toffoli teria julgado ações em que era parte o Banco Mercantil do Brasil S.A. quando em estado de suspeição. Matéria do jornal Estado de São Paulo, de 09/08/2013, informou que o ministro havia contraído empréstimo junto ao Mercantil em 2011, no valor de R$1,4 milhão a serem pagos em 17 anos. Entretanto, após o julgamento de dois casos envolvendo o banco no STF, ambos relatados Dias Toffoli, uma alteração nas condições de pagamento dos juros teriam garantido uma redução de R$636 mil sobre o total da dívida. A denúncia foi arquivada dia 14/04/2015, em sessão presidida pelo Senador Valdir Raupp, sob o fundamento de inépcia da petição.

Em nenhum dos casos relatados pelo ministro[3] há indícios de favorecimento do Mercantil. Na maioria deles, inclusive, o banco teve o seguimento de seus recursos extraordinários negado, seja por adequação do acórdão recorrido à jurisprudência da Corte ou por tratar de tema decido com base em norma infraconstitucional[4]. Sobre o comportamento do ministro, disse Matheus Faria Carneiro, responsável pela denúncia: “Não interessa se julgou a favor ou contra o banco, mas o fato é que não poderia julgar”. Esse também não foi o primeiro pedido de impeachment dirigido contra Toffoli, em agosto de 2012, os advogados Guilherme Abdalla e Ricardo Salles, apresentaram o pedido motivados pela participação do ministro no julgamento da ação penal nº 470 (o processo do “mensalão”), quando deveria ter se declarado impedido, em razão suas relações com vários dos denunciados. A denúncia também foi arquivada pelo Senado, em outubro de 2012.

A resistência ao nome de Toffoli ganhou força após a sua decisão de pedir transferência da primeira para a segunda turma do STF, em 11 de março, para preencher vaga deixada por Joaquim Barbosa na turma que terá competência para julgar as ações penais resultantes da operação Lava Jato (para os processualistas, uma excelente oportunidade para discorrer sobre o princípio do juiz natural). Na internet também já circula petição com mais de 143 mil assinaturas para que ele se afaste do julgamento. Além disso, uma das bandeiras de muitos dos que foram às ruas nos protestos dos dias 15 de março e 12 de abril deste ano tem sido a saída de Dias Toffoli do Supremo Tribunal Federal.

Imparcialidade em xeque?

Observar os detalhes dos dois casos acima, assim como as diversas críticas à indicação de Luiz Edson Fachin em função do seu manifesto apoio à candidatura da Presidente Dilma Roussef, ainda nas eleições de 2010, pode ser uma boa forma de perceber como o ideal de imparcialidade ocupa uma função dual e contingente na fronteira entre os discursos político e jurídico. Ou seja, ao mesmo tempo em que a ideia de imparcialidade assume a tarefa de simbolizar a autonomia do direito frente a pressões de outras esferas, ela é submetida à organização interna do próprio discurso jurídico.

Embora a noção de imparcialidade como o lugar do ponto de vista objetivo sobre os fatos tenha sido diretamente afetada pelos mais variados grupos de crítica do positivismo exegético no século XX, talvez em especial pelo realismo jurídico norte-americano, que radicalizou a imagem do direito como linguagem ao elevar a ideia de judge made law[5] à condição de fonte primordial de compreensão do fenômeno jurídico, o ideal da imparcialidade se manteve como categoria chave da formação de uma auto-imagem dos juízes, sobre a qual se funda a noção de legitimidade das respostas do Poder Judiciário. Sem a crença na figura de um juiz que decide conforme a lei e não de acordo com critérios outros relacionados apenas à sua subjetividade, aquele poder perderia uma das suas principais razões para manter as portas abertas. Nesse lugar reside o papel alegórico da imparcialidade judicial, cuja dimensão dogmática é fundamental para o direito.

A ruína da imparcialidade como objetividade fez o discurso jurídico sobre o comportamento dos juízes assumir um recorte distinto: a divisão entre neutralidade e imparcialidade. A partir dessa nova separação a organização desses sentidos dentro do direito passa a obedecer o dogma de que a neutralidade não existe, pois todos temos nossos sentimentos e circunstâncias, mas a imparcialidade não se confunde com ela, cuida da equidade do juiz no tratamento das partes, oportunizando-as as mesmas condições no processo, segundo disposição em lei. Renovamos a ideia de que é possível um comportamento equânime das partes pela remissão do juiz à lei, enquanto a própria postura dos juízes permanece sujeita às distintas expectativas que caracterizam uma sociedade plural. Expectativas que ganham repercussão política quando se trata da jurisdição constitucional.

Produzir semântica nova para velhos problemas parece ser uma das funções da teoria do direito. Contudo, para a categoria da imparcialidade judicial, aquela semântica se mostra cada vez mais desgastada. Baseada na tradição liberal de focar excessivamente na autonomia dos sujeitos a compreensão de questões que demandam respostas muito diversas numa sociedade complexa, a imparcialidade se coloca numa fronteira cada vez menos clara entre os discursos político e jurídico. Desse modo, a distinção entre neutralidade e imparcialidade parece frágil para dar sustentação à credibilidade das decisões judiciais, especialmente as de uma Corte que tem como sua principal competência julgar os limites da política, sendo, também, definida por ela.

Nesse sentido, é sintomático que a imparcialidade dos magistrados esteja sujeita a uma dupla avaliação. Internamente, o impedimento e a suspeição dos ministros do STF podem ser arguidos pelas partes, na forma do regimento interno e das leis do processo. Já externamente, a responsabilização política fica a cargo do Senado Federal, competente para conduzir o impeachment, em função de denúncia por crime de responsabilidade. Esse foi o modelo do constitucionalismo brasileiro de combinar independência judicial com a sujeição do Poder Judiciário à rendição de contas e ao escrutínio público. Institucionalmente parece uma excelente fórmula, mas acho que ela não foi pensada levando em conta que também os senadores (responsáveis pela sabatina e o impeachment dos ministros), um dia seriam aqueles a figurar como investigados e réus nos processos criminais na Corte.

Num contexto em que o risco da desconfiança na atuação dos juízes tende a aumentar, cresce a utilização dos mecanismos institucionais previstos para o questionamento da imparcialidade, sejam esses mecanismos políticos ou jurídicos. Essa pode ser uma explicação para a chegada dos recentes pedidos de impeachment de ministros do STF ao Senado.

 

[1] A exemplo das ADIs 3.999 e 4.086 sobre a fidelidade partidária; a ADI 3.685 sobre a verticalização das coligações eleitorais; a ADI 4.578 que discutiu a validade da chamada “lei da ficha limpa”, e as ADIs 3.345 e 3.365 que estabeleceu regras sobre o número de vereadores nas Câmaras municipais de todo o país. Em nenhum desses casos o STF pediu licença ao Congresso para julgar, mas pelo contrário, em um deles (verticalização) declarou inconstitucional emenda à Constituição aprovada. 

[2] Art. 35, II: não exceder injustificadamente os prazos para sentenciar ou despachar”, e Art. 36, III: “é vedado ao magistrado manifestar, por qualquer meio de comunicação, opinião sobre processo pendente de julgamento, seu ou de outrem, ou juízo depreciativo sobre despachos, votos ou sentenças, de órgãos judiciais, ressalvada a crítica nos autos e em obras técnicas ou no exercício do magistério”.

[3] Em consulta ao site do STF é possível visualizar 9 casos do Banco Mercantil do Brasil relatados pelo ministro Dias Toffoli: ARE 695.978/DF, DJe 26/09/2012; AI 700.393/SC, DJe 13/08/2012; RE 582.724/DF, DJe 05/10/2011;RE 604.564/GO, DJe 01/08/2011; AI 828.957/BA, DJe 03/06/2011; RE 508.024/MG, DJe16/05/2011; RE 501.852/MG, DJe 28/04/2011, e o ED AGR ED no RE 609.526/DF, DJe 16/08/2012.

[4] Motivo suficiente para a inadmissão do RE, de acordo com a Súmula nº 283, caso a decisão recorrida “assenta em mais de um fundamento suficiente e recurso não abrange todos eles.”

[5] A referência aqui é ao pensamento de Jerome Frank, que disse: “the myth that the judges have no power to change existing law or making new law: it is a direct outgrowth of a subjective need for believing in a stable, approximately unalterable legal world – in effect, a child’s world” In: FRANK, Jerome (1930) Law and the Modern Mind, p. 35.

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