Levy Fidelix e a liberdade de expressão: a Constituição protege os homofóbicos?

 

via Shutterstock.com

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A essa altura do campeonato, o leitor já soube da polêmica da última semana relacionando Levy Fidelix e a homofobia. No debate presidencial da rede Record, o candidato à Presidência da República não poupou ofensas à comunidade homossexual. Questionado por Luciana Genro a respeito de sua opinião sobre o casamento homoafetivo, Fidelix soltou algumas pérolas: “pelo que eu vi na vida, dois iguais não fazem filho”, “aparelho excretor não reproduz”, e, ao final de sua réplica, ainda defendeu o tratamento psiquiátrico dos homossexuais, clamou a “maioria a combater a minoria” e os comparou a pedófilos. Assista você mesmo ao show de horrores:

Em reação, vários setores da sociedade civil se manifestaram contra a posição homofóbica do candidato. O deputado Jean Wyllys, em artigo publicado na Carta Capital, pleiteou fossem tomadas medidas judiciais contra a candidatura. A OAB encampou a manifestação e pediu à Justiça Eleitoral a cassação da candidatura de Levy. Vários candidatos se manifestaram em repúdio a Levy. Perplexos, muitos brasileiros manifestaram sua indignação (embora, infelizmente, muitos outros tenham apoiado). E outros procuraram o Ministério Público Federal a fim de que apresente denúncia por incitação ao ódio e discriminação por orientação sexual e identidade de gênero.

Ninguém em sã consciência questiona que a opinião do Levy Fidelix é retrógrada, idiota e merece ser combatida na esfera pública. Mas será que as medidas propostas são válidas à luz de nosso ordenamento jurídico? Nesse post, pretendo problematizar essa questão à luz do direito à liberdade de expressão.

O primeiro ponto que pretendo destacar é o seguinte: desde o século XIII d.C., direito, religião e moral passaram progressivamente a se autonomizar em esferas sociais distintas. Se antes a moral e a religião se confundiam como  fundamentos normativos do direito na forma do direito natural, o intenso (e extenso) processo de pluralização das sociedades modernas tornou impossível que o direito continuasse a se legitimar com base em fundamentos morais e religiosos.

Esse movimento, institucionalizado com o constitucionalismo e os direitos de liberdade de crença/religião e a separação entre Igreja e Estado, tem duas consequências diretas. Com a laicização do Estado,  o indivíduo se tornou livre para exercer sua fé, desde que não violasse igual direito alheio. O Estado e o Direito, por sua vez, se burocratizaram e as normas jurídicas passaram a ter fundamento em si mesmas: ao invés de se apoiar na moral, o direito positivo passou a se apoiar na Constituição.

Esse novo modelo institucional incorpora uma concepção de pessoa diferente da adotada no Medievo e na Antiguidade. Antes, o indivíduo era concebido como parte de um todo orgânico, sem autonomia perante o social. Por isso, o comportamento sem sintonia com os valores socialmente aceitos era, também, um comportamento juridicamente proibido. Exemplo disso era o crime de heresia: o mero fato de adotar e pregar crenças diferente das oficiais era motivo suficiente para ser considerado um criminoso. Com John Rawls e Jeremy Waldron, podemos dizer que a heresia deixou de ser crime com a institucionalização da separação entre Igreja e Estado, que é um corolário da separação entre Direito e Moral. Ou seja, a esfera das crenças morais e religiosas deixou de ser um problema para o Estado, que apenas passou a ter legitimidade de intervir com a finalidade de proteger direitos.

Se na pré-modernidade era possível dizer que alguém era considerado pessoa por fazer parte de uma comunidade que compartilha valores, com o constitucionalismo a concepção de pessoa torna-se muito mais formal e abstrata. Um indivíduo não é parte de um todo coletivo, mas um feixe de direitos subjetivos conferidos pelo ordenamento jurídico. A heresia não pode mais ser crime porque ela não atenta contra direitos. Por mais que o herege ofenda a opinião daqueles que dele discordem, não pode ser legitimamente um criminoso tão somente por isso. O objeto da ofensa da heresia é o conjunto de valores morais/religiosos, não direitos abstratos de alguém ou de uma comunidade.

De acordo com John Rawls, essa nova concepção de pessoa se fundou em uma distinção entre política e metafísica. A metafísica é o espaço da plena liberdade, em que os indivíduos e comunidades são livres para adotar e pregar o conjunto de doutrinas filosóficas, éticas e religiosas que bem entenderem. Ninguém pode ser considerado um criminoso por adotar crenças e comportamentos associados a uma concepção metafísica específica, ou por difundi-la em seu grupo. É essa distinção entre política e metafísica que sustenta e torna possível a vivência em uma sociedade pluralista: se a metafísica é plural e os comportamentos são orientados por normas morais/religiosas das mais diversas, a política é o espaço da definição de regras de convivência comuns, que vinculam a todos os cidadãos. Na metafísica, o indivíduo é – como na concepção pré-moderna – parte de um todo indiviso, consubstanciado em um conjunto de valores. Na política, o indivíduo é um conjunto de direitos atribuídos mediante procedimentos institucionalizados em uma prática discursiva comum.

Nessa linha de abordagem, uma atividade somente pode ser considerada criminosa caso viole direitos de alguém. A dignidade da pessoa humana é garantida como uma decorrência do respeito aos direitos fundamentais que garantem a inclusão de um universo plural de concepções de bem. Não é, do ponto de vista jurídico – apesar de boa parte da doutrina jurídica pátria sustentarem o contrário – um valor intrínseco (metafísico!) da pessoa, mas uma representação conceitual do feixe de direitos fundamentais que caracterizam a concepção de pessoa em uma democracia constitucional.

Dito isso, podemos voltar ao caso de Levy Fidelix. Afinal, a proteção constitucional à liberdade de expressão protege o discurso dele?

A rigor, Fidelix disse o seguinte:

– “Pelo que eu vi na vida, dois iguais não fazem filho”;

– “Aparelho excretor não reproduz”;

– “que façam um bom proveito se quiserem fazer de continuar como estão, mas eu, Presidente da República, não vou estimular. Se está na lei, que fique como está, mas estimular, jamais, a união homoafetiva”;

– “o Brasil tem 200 milhões de habitantes. Se começamos a estimular isso aí, daqui a pouco vai reduzir para 100 [milhões]”;

– “esses que têm esses problemas, que sejam atendidos no plano afetivo, psicológico, mas bem longe da gente, porque aqui não dá”.

– “nós somos a maioria e vamos combater essa minoria”.

Homofóbico? Não há dúvidas!

Mas há crime ou violação aos direitos dos homossexuais?

Voltemos às distinções estabelecidas anteriormente. Em primeiro lugar, é inegável que o que Levy Fidelix disse é ofensivo à identidade de vários homossexuais. Ofensivo. Mas nem tudo o que é ofensivo é (i) crime ou (ii) viola direitos fundamentais. Há alguns anos, por exemplo, Dom Claudio Hummes, bispo de São Paulo, disse que a culpa da violência na cidade era dos ateus. Ofensivo? Sim. Eu, como ateu que sou, me senti ofendidíssimo na  natureza de minhas crenças. Mas perceba que Claudio Hummes não defendeu, em momento algum, que os ateus deveriam ser perseguidos – muito embora vários padres/pastores já tenham dito que os ateus devem ser combatidos. Não instigou, de forma alguma, a violação de direitos. Falou bobagem (até porque muitos dos países mais violentos do mundo são muito religiosos), mas o direito à liberdade de expressão não garante proteção alguma contra idiotice.

Muitos discursos são intrinsecamente ofensivos. Martinho Lutero e suas teses foram extremamente ofensivas à religião católica. Martin Luther King ofendeu a crença de muitos. As mulheres que lutaram pelo direito ao trabalho e por direitos políticos também ofenderam muitos conservadores. A publicação de uma revista como Playboy é ofensiva a muitos. Pra outros, as manifestações religiosas em rede aberta de televisão são extremamente ofensivas.

Mas é precisamente para garantir a possibilidade de ser ofensivo que o direito à liberdade de expressão existe. Se todos fossem politicamente corretos e apenas defendessem ideias tidas como corretas, não teria sentido algum haver liberdade de expressão. Afinal, todos teriam direito de falar o que quisessem, porque só haveria quem desejasse falar o que todos querem ouvir.  Ao falar do direito à liberdade de expressão, todos gostam de lembrar de casos como o de Martin Luther King e a possibilidade que esse direito deu a ele para defender mudanças estruturais extremamente benéficas para a sociedade.

É bacana lembrar da liberdade de expressão quando ela é utilizada para defender ideais com os quais concordamos.

Mas nosso compromisso com esse direito é testado quando somos obrigados a aceitar que aqueles que manifestam opiniões contrárias a nossas. Opiniões que consideramos odiosas. E é pra esses casos que a liberdade de expressão existe, como um direito formal que garante a qualquer um manifestar sua opinião substantiva sobre qualquer assunto. Evidentemente, há limites; e eles se escoram na observância dos direitos alheios. Ninguém pode sair gritando – o clássico exemplo – que o teatro está prestes a pegar fogo a fim de causar tumulto, e ninguém pode violar o direito alheio sob pretexto de estar escudado na liberdade de expressão. Mas, quando alguém opina abstratamente sobre algo, não pratica crime algum.

E é precisamente o que Levy Fidelix fez. Manifestou sua opinião sobre algo que seu sistema metafísico de crenças considera repugnante. Direito dele achar isso. Eu até considero que políticos deveriam se concentrar em discutir questões políticas, e não políticas fundadas em visões metafísicas do mundo. Mas é direito dos homens públicos fazer o contrário. E Levy usou o palanque para, assim como centenas de outros candidatos, falar mal dos que são “pecadores” a luz de suas crenças metafísicas. Linguagem agressiva? Sim, mas vários outros políticos usam tons agressivos.

Só pra pegar um exemplo (entre tantos!) do ex-Presidente Lula:

Lula fala em extirpar um partido político, Fidelix fala em “combater essa minoria”. Evidentemente, nenhum dos dois – até aqui – tomou nenhuma medida pra levar a cabo suas intenções. Não incitaram a violência diretamente contra ninguém; Levy ainda falou em respeitar a lei, ao dizer que “se está na lei, que fique como está”.

A liberdade de expressão protege os dois. E é bom para a democracia que seja assim! Sem censura, podemos usar o discurso do Fidelix para debater o quanto idiota suas ideias são, para apresentar razões para defender com ainda mais veemência os direitos dos homossexuais. A melhor resposta para as palavras de Levy Fidelix são as críticas que ele recebeu.

Pra finalizar, cito aqui dois episódios do direito americano que são exemplares da visão que defendi nesse artigo.

O primeiro deles é o caso National Socialist Party of America v. Village of Skokie. Em 1977, um membro do partido nazista norte-americano (é! Isso mesmo) anunciou a intenção de fazer uma passeata em um bairro judeu na cidade de Skokie (Illinois). Autoridades da cidade proibiram a passeata – primeiramente, exigiram que o movimento pagasse um seguro para danos à segurança pública, e depois terminaram por proibir o movimento. A Associação das Liberdades Civis Americanas propôs uma ação para possibilitar a passeata mas, derrotados, apelaram à Suprema Corte. E ganharam.

Em comentário ao caso (entre outros), o constitucionalista Ronald Dworkin diz o seguinte em seu livro Freedom’s Law:

(…) A opinião do Juiz Easterbrook para a Corte do Sétimo Circuito assumiu, pelo bem do argumento, que a pornografia tinha as consequências que os defensores da lei [que proibia a pornografia] alegavam. Ele disse que o argumento era ruim porque o ponto da liberdade de expressão é precisamente permitir ideias independentemente das consequências que se sigam a sua disseminação, mesmo consequências indesejáveis às liberdades positivas. “Sob a Primeira Emenda”, ele disse, “o governo precisa deixar que as pessoas avaliem as ideias. Grotesca ou sutil, uma ideia é tão forte quanto sua audiência permite… [O resultado assumido] apenas demonstra o poder da pornografia como expressão. (…)”. E isso é certo no direito constitucional americano. A Ku Klux Klan e o Partido Nazista Americano podem propagar suas ideias nos Estados Unidos.

Sei que pessoas decentes ficam impacientes com princípios abstratos quando vêem vândalos com pseudo-suásticas fingindo que o mais monumental e sangrento genocídio foi uma invenção de suas vítimas. O vândalo nos lembra de algo que muitas vezes esquecemos; o preço alto, quase insuportável, da liberdade. 

 

O segundo caso foi imortalizado no cinema, com atuações impecáveis de Edward Norton e Woody Harrelson em O povo contra Larry Flynt. O filme retrata o caso Hustler Magazine v. Falwell, de 1988, em que a revista pornográfica Hustler foi processada pelo pastor protestante Jerry Falwell por ter feito uma sátira com ele. A Suprema Corte decidiu que o pastor não teria direito a danos morais, já que a revista publicou o texto em exercício de sua liberdade de expressão. A sustentação oral, representada por Edward Norton no filme, é uma cena clássica que reflete bem como – acredito – devemos agir em defesa desse direito. Mesmo idiotas têm direito a manifestar suas idiotices. Cabe a nós criticá-los.

Me despeço com a cena do filme:

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  • Vilmar Junior

    Sóbrio e esclarecedor.

  • Pedro Veritas

    A grande questão que os apologistas tegiversam é: Há o direito constitucional legítimo do cidadão de manifestar o seu pensamento quanto ao que ele entende por certo e errado, segundo os seus princípios e valores, mediante a declaração da sua palavra, ou não ?

    Se sim, esse direito de cláusula pétrea assegurado pela Carta Magna brasileira é preservado, e a constituição é respeitada e defendida em seus fundamentos.

    Todavia, se não, essa cláusula pétrea é vilipendiada, demolida, e a carta magna e desrespeitada. Simples assim. Sem retórica nefelibática.

  • Júlio Cardoso

    Ridículo. Fazem muita tempestade com opiniões, que devem ser
    respeitadas. Ou aqui não prevalece o estado democrático de direito? Ou a
    liberdade de expressão está condicionada à censura prévia?

    O que se observa no país, neste momento, é a soberba que
    toma corpo das representações minoritárias sociais querendo ditar regras de
    comportamentos a todo o grupo social.

    O preconceito existe entre todos os grupos sociais
    universais. Países considerados de Primeiro Mundo, com educação desenvolvida,
    também praticam discriminações sociais. Se não fosse isso, no mundo não haveria
    heterogeneidade de tratamento social, com classes pobres e ricas, com
    divergências religiosas etc.

    A opinião do candidato Levy Fidelix é muito corajosa e não
    difere da maioria da sociedade cristã brasileira, que prega o respeito às
    instituições familiares. Candidatos hipócritas que pouco têm a apresentar de
    utilidade ao país, como a destemperada e reacionária Luciana Genro, a qual vive
    muito bem, ela e pai, no mundo capitalista, defendem demagogicamente comportamentos sociais de exceções, que não podem ser impingidos como regras exemplares, embora se deva respeitar as diferenças comportamentais dos seres humanos.

  • Ricardo Tariki

    Princípio da dignidade da pessoa x liberdade de expressão:- a primazia é do primeiro. Ou seja, não protege!

    • Fábio Almeida

      Por que a primazia é do primeiro? E quem disse que a liberdade de expressão não é uma dimensão da dignidade?

    • Carla

      Com toda certeza!

      Uma pena ver artigos e comentários tão “simplistas” como o do vídeo e do artigo.
      Esse tipo de comentário do vídeo sobre a questão homossexual é o que fortalece a cultura do combate ao homossexual. Para disseminar essa cultura, não precisa atacar diretamente, basta fazer este tipo de crítica. Ninguém nasce com preconceitos. Eles vão sendo criados e cultivados aos poucos por pequenas ações do dia a dia que nem vemos, como este tipo de post.
      Quando tentamos ver tudo sob a ótica das regras e leis, nos esquecemos de ver sob a ótica humana.

      Já vi diversos comentários desrespeitosos direcionados à pessoas homossexuais, já vi homossexuais sendo agredidos e homossexuais sofrendo com depressão e tentativas de suicídios. Tudo isso nasceu de pensamentos como estes sendo passados à diante. São ass vida de milhões de pessoas sendo colocadas em risco, sendo desprezada para que alguns possam simplesmente falar o que sente. Será que a liberdade de expressão vale tudo isso?

  • Débora Lima

    Pura VERDADE DOIS IGUAIS NÃO REPRODUZEM isso é ofender mas vc são os propios representates do demonio colocando ideais religiosos como homofobia

  • Deborah Dettmam Matos

    Fábio, excelente artigo. A liberdade de expressão é a arma que possuímos contra a polícia ideológica. Se queremos proteger nosso ponto de vista, é indispensável protegermos o do outro.

  • José Nunes

    Belo texto, Fábio. Me pareceu bastante convincente, tive que refletir melhor sobre algumas ideias. Parabéns!

  • Kleiton Gonçalves

    Levy Fidelix precisava ser achincalhado publicamente, pois deveria apoiar a causa gay, o kit gay em escolas, as paradas gays com sexo ao ar livre, o PL do Deputado ex-BBB sobre mudança de sexo em crianças. Enfim: quem não apoia EXPLÍCITA e PUBLICAMENTE o projeto de mordaça gay no Brasil PRECISA ser punido.

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