Rent-seeking: o problema constitucional a ser resolvido?

texto do pablo
Uma das invenções mais sensacionais do constitucionalismo é o esquema da separação de poderes. Por que considero essa estrutura institucional algo tão genial? Porque ela se dirige a resolver o principal problema de uma estrutura burocrática complexa: o rent seeking.

Rent seeking ou… porque os agentes aproveitam a proximidade do poder para beneficiar a si mesmos?

Rent seeking (ou “busca de renda” nada mais é do que um problema identificado pela teoria da escolha racional (aplicação da teoria dos jogos à teoria política) no fim da década de 1960 por Gordon Tullock e Anne Krueger.

A ideia é simples: alguém busca “renda” quando tenta obter benefícios para si mesmos utilizando seu poder de barganha política. É o que acontece, por exemplo, quando um conjunto de empresas se aproveita de sua influência política para conquistar subsídio para o produto que elas produzem. Também é o que ocorre quando uma empresa, após conquistar uma posição de proeminência econômica, busca a imposição normas regulatórias que, na verdade, servem de obstáculo para que outras empresas explorem aquele nicho de mercado (a chamada captura regulatória). No Brasil, temos vários exemplos, como o monopólio de exploração de determinados mercados por empresas nacionais ou o favorecimento tributário dos “amigos” do governo.

Evidentemente, nem todo exemplo de rent seeking está associado a empresas explorando o governo em benefício próprio. Também existem os casos em que indivíduos, ou outros grupos de indivíduos, exploram sua intimidade com o poder político para ganhar mais influência e outros benefícios.

A cada eleição, por exemplo, vemos quem está no poder – independentemente do partido – utilizá-lo a favor do candidato a que se dá suporte. Ou a favor das empresas que financiam suas campanhas.

Nos últimos meses, vimos como isso pode acontecer no serviço público. Juízes utilizaram sua influência e seu poder de criar direitos mediante retórica jurídica para reconhecer diversos direitos remuneratórios antes concedidos legalmente apenas ao Ministério Público. A cada ano, Deputados e Senadores aumentam os próprios subsídios (e os salários dos servidores do Legislativo) para patamares inaceitáveis, utilizando os poderes que a Constituição atribui a eles.

E isso acontece com todas as carreiras mais intimamente associadas ao Estado. Têm poderes diversos de manejar as instituições a seu favor e (não surpreendentemente) o utilizam com essa  finalidade.

Não, isso não é uma característica do “Brasil” ou da “cultura brasileira”. Tampouco é um problema ético: na maior parte dos casos citados, há quem seja contrário ao uso da máquina pública para benefício próprio.

Isso também aconteceria (e acontece) em outros países ditos “desenvolvidos”, mas quero propor uma hipótese: a única maneira de resolver o problema do rent seeking é por meio de modificações estruturais no modo como as instituições funcionam. E o papel do sistema constitucional é fundamental para alcançar esse objetivo.

Estruturação do rent seeking em prol da cooperação societal: uma função do sistema constitucional?

Volto, aqui, à primeira fase do texto: o esquema da separação de poderes é uma invenção sensacional do constitucionalismo. O motivo? Ele reestrutura o rent seeking disponível na estrutura institucional do sistema político, de modo que um grupo não possa deter, sozinho, múltiplas competências institucionais em suas mãos.

O resumo dessa ideia está nessa célebre passagem do Federalista nº 51, escrito por James Madison: “the great security against a gradual concentration of the several powers in the same department consists in giving to those who administer each department the necessary constitutional means and personal motives to resist encroachments of the others. The provision for defines must in this, as in all other cases, be made commensurate to the danger of attack. Ambition must be made to counteract ambition.”

O que Madison oferece é, na verdade, a segunda melhor escolha ao problema de como estruturar o poder. A melhor escolha seria a que supusesse que os governantes querem alcançar o bem público e fazer tudo o que estiver a seu alcance para fazer isso. Mas essa não é uma suposição razoável: ainda que existam políticos bons, que desejem isso, também existe quem queira apenas subverter o poder em seu benefício próprio. Por essa razão, é preciso moldar o sistema político a partir dessa pressuposição – e esse é o insight de Madison: ao invés de construir instituições baseadas na busca pelo bem comum por parte de quem as ocupa, as instituições devem ser construídas de forma que a ambição desmedida de um eventual ocupante do poder seja dirigida à ambição de outro ocupante do poder.

O sistema de freios e contrapesos lastreado na separação de poderes funciona com base nessa premissa. As instituições têm maior probabilidade de conduzir ao bem público se seus ocupantes, ao procurarem realizar suas próprias ambições, tiverem que limitar as ambições dos outros. O Presidente da República limita as pretensões de Senadores e Deputados para preservar seus próprios poderes, e Senadores e Deputados respeitam os Juízes porque de outro modo sabem que o Poder Judiciário pode impor barreiras intransponíveis ao exercício de seus poderes.

Em outras palavras, a “grande sacada” da separação de poderes está no fato de que ela estrutura o rent seeking em prol da cooperação entre agentes que, de outro modo, atuariam tão somente de modo egoísta. Ao decidir um caso, um Juiz precisa apresentar argumentos, ao menos aparentemente, fundados “no direito”, pois sabe que, de outro modo, poderiam ter sua decisão questionada não apenas por meio de um recurso jurídico, mas também sujeita à opinião pública, que não deixa de ser um outro “agente” no jogo institucional. E, ao mudar a lei, os Legisladores também estão sujeitos a essa opinião, mas também ao fato de que o Judiciário poderá declarar o ato inconstitucional.

Em outras palavras, a separação de poderes impõe uma série de problemas estruturais para a estabilização do rent seeking. E aí você pergunta: “ok, mas o Brasil adota a separação de poderes… por que temos tantos problemas estruturais com rent seeking?”

A pergunta, evidentemente, é legítima.

Minha hipótese – e só posso oferecer, no momento, uma hipótese a ser comprovada/refutada empiricamente -, é a de que falta aquilo que o constitucionalista de Harvard Adrian Vermeule, em seu System of Constitution, chama de abordagem sistêmica. De acordo com Vermeule, a maior parte das abordagens institucionais fracassa em resolver o problema do conflito institucional porque se foca apenas na lógica com que uma determinada instituição funciona, sem levar em consideração como ela se relaciona com outras instituições e com seus próprios membros (indivíduos).

A abordagem sistêmica proposta busca levar em conta a operação do sistema institucional como um todo, considerando que o sistema é composto por várias camadas. Por exemplo, para reformar o sistema processual civil, é preciso considerar os interesses dos juízes (camada 1), do Judiciário enquanto instituição (camada 2), dos advogados (camada 3) e da população (camada 4), sem deixar de levar em conta os interesses do Poder Legislativo (camada 5) e de seus membros, Deputados e Senadores (camada 6).

Complicado, não? Mas é por não considerar a complexidade de todas essas relações que boa parte de nossa legislação acaba por  ter eficácia baixíssima. Não por menos, tenho poucas dúvidas de que o novo Código de Processo Civil será pouco eficiente. Tão alardeado como solução para o problema da celeridade processual, o CPC simplesmente pressupõe a boa vontade de todos os envolvidos em colaborar com o bom andamento do processo, ao invés de estabelecer um sistema processual baseado na tese de que boa parte dos interessados desejarão, sim, protelar o andamento dos processos por um bom tempo – e com ferramentas criadas pelo código novo.

Também é resultado da cegueira quanto ao problema do rent seeking o fato de que simplesmente não conseguimos estruturar uma carga tributária justa, porque os lobbies no Congresso Nacional sempre a direcionam para o lado errado – e por isso, ao invés de tributar mais a renda, tributamos fortemente a produção e o consumo, com todos os nefastos efeitos para a camada mais pobre da população.

E assim também o problema da administração dos Tribunais. Concebido como órgão de controle do Judiciário, o CNJ desde o início foi concebido para não funcionar como tal, dado o modo como sua composição foi instituída. Composto majoritariamente por magistrados, não é por acaso que o órgão tem reconhecido direitos como PAE, auxílio-moradia e auxílio-alimentação aos membros do Judiciário, inflando agudamente sua remuneração.

Muito já melhorou no país desde a redemocratização em 1988. Mas, se não conseguimos resolver ainda muitos dos problemas institucionais que ainda nos assolam, grande parte da razão é a falta de direcionamento de esforços para diluir o rent seeking em nossas instituições.

E a melhor maneira de fazer isso é reconstruir as instituições para que os diversos grupos de interesse presentes em nossa estrutura societal tenham representatividade políticasuficiente a fim de que tenham condição de lutar por seus próprios interesses. Somente assim, e com uma perspectiva de reforma institucional concentrada na dissolução de focos onde o rent seeking possa existir, será possível construir uma sociedade onde os descalabros recentes sejam combatidos e anulados.

Fique atualizado!

Cadastre seu e-mail e receba todos os nossos artigos!

Powered by WordPress. Designed by Woo Themes