Isonomia ou privilégio?

 Alexandre Douglas Zaidan de Carvalho

Doutorando em Direito, Estado e Constituição na Universidade de Brasília

Alexandre Araújo Costa

Professor da Universidade de Brasília

 

Praticaria crime de peculato um juiz que tomasse decisões em que exercesse poderes que a constituição não lhe dá com o intuito de apropriar-se de patrimônio público que não lhe foi conferido pela lei, mas do qual ele tem posse em virtude de suas funções públicas. Porém, o sistema penal não identifica crime quando os órgãos criados para controlar administrativamente o sistema de justiça (os Conselhos da Magistratura e do Ministério Público) ou o próprio Poder Judiciário deixam de atuar como órgãos de controle e passam tomar decisões voltadas a garantir os interesses dos seus integrantes e a instituir privilégios que os beneficiam.

Não obstante, podemos qualificar como corrupção sistêmica[1] esse trânsito em que órgãos incumbidos de zelar pelo interesse público se convertem em órgãos de defesa de interesses corporativos, especialmente quando o resultado direto dessa atuação é a apropriação pelos juízes, promotores e procuradores de uma parcela expressiva do patrimônio público que não lhes foi atribuída pelas leis.

O que observamos nos últimos anos foi que as instituições criadas para controlar e tornar mais eficientes o Judiciário e o Ministério Público perderam a capacidade de atuar como instâncias controladoras dos interesses corporativos dos seus integrantes, sendo completamente cooptadas por tais interesses, e contribuindo para que haja uma absoluta confusão entre os “interesses do Judiciário” (e do MP) e os “interesses dos juízes” (e dos promotores e procuradores). Para utilizar uma linguagem clássica da teoria política, essas instituições não agem conforme os interesses republicanos no bem comum, mas como facções voltadas a garantir os interesses próprios do grupo que elas representam.

Quando essas instituições assumem como parte relevante de sua competência a garantia dos interesses dos integrantes das carreiras que elas supervisionam, elas se transformam em entidades corporativas desvirtuadas, pois ao contrário dos sindicatos e das organizações profissionais que trabalham em constante negociação com o Estado para a garantia dos interesses das classes que elas representam, os Conselhos da Magistratura e do MP não foram criados para representar uma classe de servidores públicos, mas para controlar a atuação dos integrantes dessas corporações, motivo pelo qual elas receberam várias competências administrativas que as entidades corporativas não têm.

Porém, a prática atual de tais conselhos indica que eles foram convertidos em entidades representativas das corporações que elas deveriam controlar, o que gera uma situação esdrúxula: as competências voltadas a evitar os desvios e garantir a eficiência são atualmente utilizadas para ampliar benefícios e estabelecer privilégios.

Talvez o fenômeno mais grave envolvido nessa corrupção das instituições do sistema de justiça seja a recente transformação da política remuneratória da alta burocracia do Judiciário e do MP em uma questão hermenêutica, pois quando os órgãos dessas instituições atribuem direitos indevidos a seus membros por meio de interpretações malabarísticas, essas decisões ficam blindadas contra qualquer tipo de controle democrático porque são beneficiados os interesse corporativos que cooptaram as instituições incumbidas de controlar esse tipo de corrupção.

Nos últimos meses foram publicadas várias notícias sobre a ampliação de vantagens remuneratórias ou benefícios de “caráter indenizatório” (!!!) para membros da magistratura e do Ministério Público, vantagens essas que não foram estabelecidas por leis democraticamente votadas, mas por decisões administrativas e judiciais baseadas no princípio constitucional implícito da isonomia entre as carreiras.

Essa série de decisões teve origem em um pedido apresentado ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ) pela Associação dos Juízes Federais (AJUFE) e pela Associação da Justiça Militar Federal (AMAJUM). Em maio de 2009, essas associações solicitaram que CNJ reconhecesse “a simetria constitucional entre os regimes jurídicos do Ministério Púbico Federal e da Magistratura federal, com a comunicação a esta das vantagens atribuídas àquele, como as de caráter geral e indenizatório”, o que teria como consequência a implantação dos seguintes benefícios:

  1. auxílio alimentação;
  2. licença prêmio;
  3. venda de férias;
  4. licença não remunerada para assuntos particulares;
  5. licença para representação de classe, para membros da diretoria, até três por entidade;
  6. auxílio moradia para locais de difícil acesso;
  7. licença remunerada para curso no exterior;
  8. garantia de gozo dos mesmos direitos reconhecidos aos servidores na legislação destes.

Ou seja, os magistrados pediram não apenas as vantagens ausentes da Lei Orgânica da Magistratura que estivessem previstas na LC n. 75/1993 (que estabelece o estatuto do Ministério Público da União), mas também toda e qualquer vantagem que também estivesse contida no Estatuto dos Servidores Civis da União (Lei 8.112/1990). A pretensão era tão descabida que foi negada liminarmente pelo Conselheiro José Adonis Callou de Araújo Sá (membro do MPU), que destacou a evidente incompetência do CNJ, pois a providência“significaria verdadeira norma autônoma ou sentença de eficácia aditiva de extensão de vantagens”. Acrescentamos ainda: uma decisão tomada por órgão com competências administrativas (e não judiciais), que criaria direitos sem obedecer à exigência de criação por lei, mas ao arrepio dela.

Pois bem, conforme trâmite no CNJ, o pedido foi posteriormente apreciado em setembro de 2010 pelo Conselheiro Walter Nunes da Silva Júnior (juiz federal que presidiu a AJUFE entre 2006-2008 e era beneficiado diretamente pela decisão), que entendeu ser desnecessária a edição de lei para a extensão requerida pelas associações de juízes, pois a “aplicação recíproca dos estatutos das carreiras da magistratura e do Ministério Público se autodefine, é autossuficiente, não necessitando de lei de hierarquia inferior para complementar o seu enunciado, de modo que se trata de princípio ordinatório, o qual possui comando imperativo”.

A falta de fundamento para justificar essa aplicação recíproca é contornada pela afirmação explícita de um fundamento vazio, que só é convincente para os próprios beneficiados: o argumento de que é evidente que os magistrados têm direito a todos os benefícios concedidos ao MP e aos servidores em geral.

Esse tipo de interpretação tradicionalmente encontrou óbice na jurisprudência, consolidada na Súmula 339 do STF: “Não cabe ao Poder Judiciário, que não tem função legislativa, aumentar vencimentos de servidores públicos sob fundamento de isonomia”. Mas a interpretação criativa do CNJ contornou essa dificuldade com a afirmação de que não se tratava de extensão analógica, mas de uma “aplicação direta” (!!!) do art. 129, §4º, da CF, que determina a aplicação ao Ministério Público, no que couber, os direitos dos magistrados definidos no art. 93 da CF.

Assim, uma regra que determina a aplicação ao MP de certas garantias institucionais dos magistrados e de algumas regras sobre a estrutura da carreira previstas na Constituição, tornou-se artificialmente a justificativa para a aplicação aos magistrados de vantagens pecuniárias previstas em lei.

Esse voto divergente, em que os magistrados afirmam o seu direito de criar vantagens remuneratórias por decisão administrativa, afastava não apenas a necessidade de lei, mas também a incidência da súmula, que permaneceria vigente para todas as demais carreiras.

Tratava-se, pois, da criação pelos magistrados, de um benefício exclusivo para a magistratura, situação tão absurda que exigiu desse voto uma série de malabarismos hermenêuticos, como a defesa de que o CNJ tinha competência para decidir esse caso porque a ele compete a gestão político-administrativa do Poder Judiciário, sendo missão sua evitar o tratamento assimétrico dispensado à magistratura. Assim, chega-se ao incongruente argumento que alinha dois absurdos de forma contraditória: afirma-se a competência inconstitucional do Conselho de julgar o pedido porque ele teria competência para evitar tratamentos assimétricos, e sustenta-se que a conclusão não é baseada na aplicação da isonomia para poder saltar por cima da súmula n. 339.

Contando com a maioria, a demanda corporativa dos magistrados se converteu na Resolução 133/2011, já tratada aqui no blog em texto de Alexandre Araújo Costa, garantindo o pagamento do auxílio-alimentação com efeitos retroativos, também sem amparo jurídico, pois se o auxílio de fato tivesse caráter alimentar e indenizatório, só poderia ser pago prospectivamente. Esse ponto foi destacado em decisão posterior do Conselheiro Bruno Dantas, também do CNJ: “a necessidade fisiológica que fundamenta o direito à percepção de verba de caráter alimentar não se protrai no tempo, de modo que seu pagamento extemporâneo esvazia por completo a utilidade e a legitimidade da medida”.

Embora a constitucionalidade da Resolução ainda esteja em discussão no STF na ADI 4822, sob pedido de vista do Ministro Dias Toffoli e com votos pela improcedência dos Ministros Fux e Teori Zavascki, segundo decisão do CNJ, até 03 de junho de 2013, os tribunais já haviam pago quase R$250 milhões a título de pagamentos retroativos.

Também o CNMP ao julgar o procedimento de controle administrativo n. 0.00.000.000447/2011-40, em 21/09/2011, decidiu que não havia ilegalidade na autorização para que os órgãos do Ministério Público estaduais também pagassem o auxílio alimentação, apontando o precedente no acórdão: “O Conselho Nacional de Justiça decidiu, recentemente, que deve haver uma simetria de tratamento entre a Magistratura e o Ministério Público, reconhecendo desta feita, a natureza indenizatória do auxílio-alimentação, e, consequentemente a legalidade da sua concessão em acréscimo a parcela única do subsídio”.

Esse argumento curiosamente contorna o fato de que a argumentação do CNJ é corporativa e inconstitucional por meio do tratamento dessa decisão administrativa como um precedente judicial: em vez de o Ministério Público exercer sua função institucional de custos legis, ele utiliza uma decisão absurda como base para garantir a si próprio vantagens indevidas. Nesse passo, fica evidente que o salto lógico empreendido pelos interesses corporativos é a mágica conversão de “decisões de juízes” em “decisões judiciais”. Mas essa mágica é convertida em entendimento oficial estratificado justamente porque beneficia as instituições que são incumbidas de controlar a apropriação indevida do patrimônio público.

Estava dado o sinal para que vários pedidos fundados no princípio da isonomia de tratamento entre ambas carreiras começassem a chegar aos órgãos de cúpula do Judiciário e Ministério Públicos estaduais[2], ao CNJ, CNMP e, inclusive ao STF, que, atuando na esfera administrativa com os mesmos poderes que os juízes teriam na esfera jurisdicional, reinventaram o direito de autonomia institucional: agora a autonomia administrativa e financeira é a desculpa (na prática inquestionável) utilizada para que o Poder Judiciário e o Ministério Público legislem em causa própria e possa deferir vantagens remuneratórias a juízes, promotores e procuradores.

Esse fenômeno de corrupção das instituições jurídicas, que ultrapassam suas funções constitucionais em busca de garantir privilégios corporativos, não será tratado juridicamente como corrupção porque não se trata de garantir o benefício de uma pessoa, mas de atribuir os privilégios de classes de servidores públicos. Por mais que eles próprios argumentem tratar-se de direitos, privilégio é a palavra adequada para designar benefícios que são criados para si próprios por agentes políticos do Estado, sem qualquer base democrática, por meio de argumentos malabarísticos em que juízes, promotores e procuradores reconhecem a si próprios um direito implícito de superioridade: uma igualdade no patamar superior, que para eles é um princípio evidente do sistema.

Essa situação contribui decisivamente para que a renda continue sendo concentrada no 1% mais rico da população (que os integrantes dessas profissões evidentemente integram, apesar do ultrajante discurso pelo qual suas entidades corporativas costumam defender a indignidade dos salários dos magistrados e dos membros do MP)[3]. E, de quebra, acentuamos o caráter regressivo do sistema tributário, ao inventarmos a alíquota zero para a remuneração que ultrapassa o teto remuneratório: em vez de tributar acentuadamente uma renda que representa uma manifestação eloquente de riqueza, o Estado concede a seus altos dignitários o direito de aumentar a sua remuneração sem pagar qualquer imposto.

Esse fenômeno revela a adoção de um discurso muito preocupante para a democracia, pois os integrantes da alta burocracia do nosso sistema de justiça não apresentam as demandas corporativas de seu pares como uma reivindicação sindical politicamente organizada e que devem ser concedidas por meio legislativo e avaliadas em termos de seus efeitos orçamentários. As instituições jurídicas convertem a questão política do estabelecimento da remuneração em uma questão hermenêutica, que é justamente o campo em que elas detém hegemonia.

Ao transformarem a definição de sua própria remuneração em uma operação exegética da Constituição, essas instituições ganham autonomia para definir suas próprias remunerações. De hoje em diante, elas estão livres de participarem, como as demais profissões, da necessidade de concorrer publicamente pela divisão dos bens arrecadados pelos tributos, pois elas podem se apropriar do erário por malabarismos hermenêuticos e por decisões administrativas que elas próprias deveriam impedir.

Essa situação kafkiana conduz a uma série de decisões excêntricas, já que elas têm de ser apresentar publicamente como algo que elas não são (como indenizações e não como aumentos além do teto) e elas precisam fazer isso em nome de uma isonomia inexistente.

Foi o caso, por exemplo, da iniciativa do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro em instituir um auxílio-educação para seus magistrados e servidores, em até 25% do valor do maior subsídio pago por aquele Estado, o que pode alcançar o valor R$7.250,00, a depender da quantidade de filhos do(a) magistrado(a). O projeto, que ainda inclui uma ajuda de custo de 50% do subsídio por ano para aperfeiçoamento profissional, seguiu para o legislativo carioca acompanhado da mensagem 07/2014, cuja justificativa foi “dar tratamento isonômico assegurado em lei aos membros do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro.” Ocorre que o também inconstitucional auxílio pago aos membros do parquet é de R$906,82 por dependente, podendo chegar a R$2.720,46.

Um cálculo de isonomia nada isonômico, como se pode ver, mas muito útil para gerar para o MP a possibilidade de aumentar administrativamente seus vencimentos em nome da isonomia com os magistrados que haviam aumentado sua remuneração em nome da isonomia com o MP. Com isso, inventamos o moto continuo dos aumentos salariais da alta burocracia do sistema de justiça.

Se prestarmos atenção aos efeitos desse modo estrategicamente perfeito de aumentar o próprio salário, podemos ver o quão interessante ele se apresenta para as associações, pois se inventou a ficção jurídica extremamente eficaz dos benefícios remuneratórios de caráter indenizatório. Quando elas formulam seus pedidos, o auxílio assume um caráter indenizatório que afasta a incidência do imposto de renda e permite ultrapassar o teto remuneratório. Porém, na hora de pagar o retroativo, ele é tratado como se tivesse caráter remuneratório, pois é preciso “recompor as perdas suportadas pelos membros durante esse período”, como disse um representante do Ministério Público paulista, deixando claro que o caráter indenizatório é meramente ficcional. Tudo isso sem precisar se limitar ao teto constitucional, já que, segundo as decisões, a concessão desses benefícios “indenizatórios” extras não possuem natureza de vencimentos.

Ou seja, o que se estabelece é uma espécie de jogo ganha-ganha corporativo, capaz de desafiar a lógica e a matemática, mas sustentado em função do abuso da autonomia orçamentária somado à benevolente atuação dos órgãos que, criados para regulamentar e fiscalizar o gerenciamento administrativo-financeiro do Judiciário e do Ministério Público, têm contribuído decisivamente para reforçar os privilégios corporativos desses grupos.

Auxílio-moradia

O mais recente episódio dessa cadeia de acontecimentos foi a concessão do auxílio-moradia. O tema já estava em discussão no CNJ há algum tempo, sem tratamento uniforme dos pedidos de providência[4] e procedimentos de controle administrativo aguardavam o resultado de vários mandados de segurança (ns. 26.794, 28.040, 27.460 e 27.514) em trâmite no STF.

Sem embargo, o próprio CNJ, adotando o entendimento da reserva de lei para o pagamento do auxílio-moradia, suspendeu resoluções dos tribunais regionais do trabalho da 8ª (PA e AP), 9ª (PR), 13ª (PB) e 19ª (AL) regiões, que instituíram o auxílio, ao deferir liminar requerida pelo procurador federal Carlos Studart Pereira no PP 0002162-56.2013.2.00.0000. Também por decisão liminar, em 15/08/2014, da Conselheira Ana Maria Amarante foi suspensa a Resolução n. 31, do TJRN, reafirmando decisões do próprio CNJ no sentido de que o benefício não pode ser concedido de forma irrestrita a todo e qualquer magistrado e que visa justamente a suprir faltas específicas, existentes em determinadas cidades.

Do ponto de vista jurídico, a controvérsia gira em torno do alcance da disposição contida no art. 65, II, da Lei Complementar 35/1979, a LOMAN, que diz o seguinte:

Art. 65 – Além dos vencimentos, poderão ser outorgadas aos magistrados, nos termos da lei, as seguintes vantagens:

(…)

II – ajuda de custo, para moradia, nas localidades em que não houver residência oficial à disposição do Magistrado. 

Para as associações, a previsão do auxílio naquela lei aliada ao argumento da isonomia (ministros dos tribunais superiores, conselheiros do CNJ e juízes convocados podem receber) é razão suficiente para estender o benefício aos demais magistrados que não tenham residência na cidade onde trabalham. Ocorre que o art. 35, V, da mesma lei, estabelece como dever a residência do magistrado na comarca onde ele atua. Uma exigência parcialmente justificada pela necessária aproximação dos juízes com a realidade do local onde desempenham suas funções. Além disso, o próprio Supremo Tribunal Federal, em decisão da Ministra Cármen Lúcia no MS 28.024/DF, já tinha se manifestado pela necessidade de lei específica para a criação do auxílio:

“Esse auxílio-custo/moradia há de se dar, assim, nos termos da lei, ou seja, deve ser criado por lei que fixe os seus parâmetros de reconhecimento e exigibilidade. 1.No sistema brasileiro, cabe ao Estado-membro aprovar, se for o caso, a regulamentação sobre o auxílio-moradia que vier a ser concedido aos seus magistrados, conforme textualmente esclarecido no voto do Ministro Relator da Representação 1.417-DF (Min. Moreira Alves, DJ 15.4.1998)” Trecho da decisão da Ministra Cámen Lúcia no MS 28.024/DF, DJ 24.6.09.

Porém, essa não foi a posição mantida pelo Min. Luiz Fux ao deferir pedido de tutela antecipada na ação ordinária n. 1.773/DF, movida por alguns juízes federais, com a intervenção da AJUFE como assistente. Pelo impacto político e orçamentário que tem essa decisão, seus fundamentos merecem maior atenção, especialmente em função da extensão de seus efeitos a todos os juízes e membros do Ministério Público do Brasil, conforme resoluções do CNJ e CNMP editadas logo após o deferimento da tutela.

Além da reserva de lei específica e não decisão judicial como fundamento indispensável para a concessão do auxílio-moradia, a teor da LOMAN, outro fator importante para a compreensão do tema não foi levado em conta na decisão: do modo como concedido, o auxílio não tem qualquer caráter indenizatório, não exige justificativa ou prestação de contas para ser pago, constituindo-se em mais uma parcela pecuniária destinada a compensar o agente público pela função que exerce no cargo, função do subsídio.

Que os subsídios do Poder Judiciário, vinculados ao teto remuneratório pago aos Ministros do STF, constituem-se nos mais altos salários pagos no serviço público não é nenhuma novidade. O que aparece de distinto na decisão do Ministro Fux é que o subsídio é apresentado como uma forma injusta de remunerar a magistratura, prejudicada pelas sucessivas perdas em relação a outras carreiras do serviço público.

Nesse ponto aparece a primeira incongruência da decisão ao buscar suprir a exigência de lei. Se um dos fundamentos para a fixação dos subsídios em grau tão elevado é de que juízes e membros do MP merecem um tratamento remuneratório diferenciado de outros servidores (o que de fato já ocorre), qual o sentido de buscar na Lei n. 8.112/90 (Estatuto do Servidores Civis da União) o argumento para o pagamento do auxílio?

Destacar essa comparação esquecendo o quão distantes estão as remunerações entre as duas categorias evidencia justamente como se opera o jogo ganha-ganha de que dissemos acima: garantido o maior subsídio, resta somar outros benefícios.

Outras comparações entre situações incomparáveis são feitas na decisão. Por exemplo, põe-se lado a lado a condição de um magistrado que deve fixar-se definitivamente na sua cidade de lotação, por previsão constitucional e legal, com a de magistrados convocados para atuar fora de sua unidade, como é o caso dos que assumem função de caráter temporário nos tribunais superiores ou no próprio CNJ, em Brasília.

A decisão também apresenta outro argumento que chama a atenção:

“Ainda que assim não bastasse, um Juiz Federal percebe hoje mensalmente cerca de metade do que um Promotor de Justiça, um Juiz de Direito Estadual e, até mesmo, vencimentos inferiores aos de servidores de entidades paraestatais. Mesmo após a concessão do auxílio moradia, os juízes federais continuarão a receber bem menos do que os referidos agentes públicos.”

O argumento é deveras curioso porque utiliza uma flagrante inconstitucionalidade como fundamento válido para conceder o pedido dos magistrados. Ora, se segundo o Min. Fux um juiz federal titular, que hoje ganha R$25.260,20, recebe metade do valor de promotores e juízes estaduais, então estes estão ganhando cerca de R$50.000,00, valor que em muito ultrapassa o teto constitucional: R$29.462,25. Logo, a providência a ser tomada não seria a de conceder o auxílio-moradia, mas oficiar imediatamente o CNJ e o CNMP para apurar a violação à Constituição pelos órgãos que estão pagando salários desvinculados do teto, promovendo o corte dos excessos e a devida reparação ao erário por quem deu causa à sangria de recursos públicos.

A utilização de exemplos totalmente desconexos com o regime de subsídio na argumentação presente na decisão alcança um grau ainda mais estranho quando o Ministro afirma:

“E nem se diga que o referido benefício revela um exagero ou algo imoral ou incompatível com os padrões de remuneração adotados no Brasil. É que cada categoria de trabalhador brasileiro possui direitos, deveres e verbas que lhe são próprias. Por exemplo, juízes federais não recebem adicional noturno, adicional de insalubridade, adicional de periculosidade, participação nos lucros, FGTS, horários advocatícios, bônus por produtividade, auxílio-educação, indenização para aprimoramento profissional, ou mesmo qualquer tipo de gratificação por desempenho. Os juízes brasileiros sequer recebem qualquer retribuição por hora extra trabalhada, o que é, destaque-se, um direito universalmente consagrado aos trabalhadores.”  

Novamente o recurso à analogia entre condições incomparáveis aparece como fundamento da concessão. Isso porque, excluindo-se alguns funcionários de empresas públicas e sociedades de economia mista brasileiras, cujo regime de trabalho é regido pela CLT, não há na estrutura remuneratória do serviço público servidores que recebam FGTS, participação nos lucros, honorários advocatícios, gratificação por desempenho, etc. A série de exemplos retoricamente apresentados como mais um motivo para a concessão não faz parte do universo de possibilidades de benefícios a que os juízes estariam “injustamente privados”, inclusive porque como agentes políticos só podem ser remunerados com base no subsídio (art. 39, § 4º, CF).

O que a linguagem empregada na decisão revela, e aqui em perfeita simetria com o parecer da Procuradoria-Geral da República várias vezes citado, é que para esse tipo de reivindicação corporativa deve prevalecer uma visão cristalizada, segundo a qual pouco importa a consistência jurídica da decisão, contribuindo para o desvirtuamento das regras constitucionais de remuneração no serviço público. Além de desconsiderar fatores econômicos, a absurda desigualdade de renda e acesso a serviços básicos por parcela significativa da população brasileira.

Como paradoxalmente escrito na decisão, importa que “sob uma ótica jurídico-principiológica, é de ressaltar que não devem existir castas no Poder Judiciário”, ainda que para tanto se reforce a própria casta judicial em detrimento do restante da sociedade.

Uma decisão tomada com fundamentos tão frágeis assim parece justificar a pressa do presidente da Associação Paulista do Ministério Público ao declarar que:

“Devemos pensar a questão do pagamento do auxílio-moradia a partir da decisão do ministro do Supremo Tribunal Federal, Luiz Fux, para frente. Tendo sempre em mente o seguinte: decisão judicial da mais alta corte, seja em liminar ou em definitivo, cumpre-se (…). Então, o esforço maior é para que todos os Estados cumpram o quanto antes esta decisão, mandando pagar o auxílio-moradia desde setembro. Porque, uma vez consumado este fato, a situação se consolida, e nós podemos dar passos adiante, que é o nosso objetivo.”

Entre os discursos corporativos e os dados

Não bastasse a obtenção de todas as vantagens remuneratórias de constitucionalidade duvidosa por incompatibilidade com o regime de subsídio, magistrados e suas associações seguem na linha de frente da luta pelo incremento de seus polpudos salários.

Se parece evidente que todo trabalhador procura as melhores condições, inclusive salariais, para sua própria carreira, assim como é das associações e sindicatos assumir esse papel em defesa de seus membros, mais claro parece ainda que, nas condições econômico-sociais do Brasil, magistrados ocupam uma posição demasiadamente privilegiada, seja qual for o ângulo de comparação como já demonstramos aqui no blog ao tratar da PEC 63/2013, o que torna sem sentido muitas das demandas corporativas da categoria.

Todavia, a situação se torna mais alarmante quando visualizamos os discursos que elas ensejam, manifestados inclusive nos autos de processos judiciais que passaram a ser suspensos em campanha coordenada pela Associação dos Juízes Federais/AJUFE, como moeda de troca para o alcance de gratificação vetada pela Presidência da República por ausência de previsão orçamentária.

Ao decidir suspender um desses processos, justificando que não assumiria a carga de trabalho do substituto enquanto a vaga não fosse preenchida ou fosse implantada a gratificação por acúmulo de função, destacou um magistrado federal em Niterói:

“Diante da necessidade de continuidade de serviço público essencial, e carência de juízes, é possível a acumulação, desde que o magistrado com ela concorde, expressa ou tacitamente. Esta acumulação não é coercitiva, a ponto de obrigar o juiz, bem como qualquer trabalhador, a atuar sem retribuição adequada. Nosso ordenamento jurídico, bem como tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário, não admitem trabalho forçado, sendo tipificado como crime reduzir de alguém à condição análoga de escravo (artigo 149 do Código Penal)”. 

Para os que acreditam que a condição de julgar envolve a capacidade de fazer prevalecer o direito, independentemente do cálculo sobre se a norma beneficia ou não quem está investido da jurisdição, a decisão é lastimável. E novamente o argumento para fazer da própria função um instrumento de barganha é a isonomia: “É preciso acabar com essa discrepância de tratamentos. O Ministério Público trabalha menos e recebe valores maiores. Com a gratificação, o valor recebido pode ultrapassar o dos ministros do Supremo e não há nada que justifique isso”, disse Antonio César Bochenek, presidente da AJUFE.

Outras justificativas têm sido frequentes na batalha dos nossos juízes pela (super)valorização da carreira. Entre elas estaria a crescente insatisfação, o que estaria estimulando a exoneração de muitos juízes para ocupar outros cargos públicos. Mas esse não é o diagnóstico do Censo do Poder Judiciário, divulgado pelo CNJ esse mês, que ouviu 10.796 magistrados (64% de todos os juízes em atividade no Brasil).

Segundo o relatório, 91,8% responderam positivamente a afirmação “Estou satisfeito com a minha escolha profissional de ser magistrado”, e entre os magistrados que ingressaram na carreira nos últimos dois anos, apenas 3,4% disse ter realizado provas de concursos para outras carreiras. Entre os juízes federais, os mais insatisfeitos com a remuneração, esse número chega a 7,3%, ainda assim um número na contramão do discurso de que há uma grande evasão de quadros para outras carreiras públicas. E embora o censo não tenha apurado quantos juízes deixaram a carreira para ingressar na advocacia, eu nunca ouvi falar de um caso apenas, de modo que esse seria um dado interessante para as associações fundamentarem seus pleitos.

O problema de tratar essa questão apenas pelo viés corporativo da isonomia sem levar em conta dados globais sobre os salários e a distribuição de renda no país, como parece ser o direcionamento que o tema tem recebido até agora, é que ao invés de se excluir determinado benefício incompatível com a estrutura remuneratória do Estado brasileiro, cria-se a expectativa de ganho para todas as associações de carreiras que potencialmente podem alcançar alguma vantagem.

Cria-se, assim, um estímulo para a reprodução de um círculo vicioso que tende a destruir não só o controle democrático da transparência no pagamento de servidores públicos, viabilizado pelo regime de subsídio, mas também engendrar mecanismos seletivamente perversos de apropriação do erário por grupos profissionais já remunerados em patamar acima das reais possibilidades orçamentárias do Estado, o que no longo prazo é insustentável.

Foi nesse sentido que, também sob o fundamento da isonomia, os defensores públicos aprovaram no Conselho Superior da Defensoria Pública da União o pagamento do auxílio-moradia em igual valor pago aos juízes e membros do MP, R$4.377,73. E demonstrando que de indenizatório o auxílio não tem nada, salvo como discurso, a Associação dos Magistrados Brasileiros pediu a extensão do pagamento para os juízes aposentados. É de se imaginar como poderia ser justificado o requerimento: a inexistência de residência oficial no local onde o juiz goza a sua aposentadoria?

Isonomia seletiva e apropriação do Estado

Fato que merece observação no panorama descrito é como o argumento de isonomia acaba sendo articulado para promover mais desigualdades. Isso porque, sob a “ótica jurídico-principiológica” a que se refere o Ministro Fux, isolar do discurso jurídico a ideia de que a simetria de condições salariais entre magistratura e Ministério Público é um valor a ser preservado independentemente da complexidade de fatores econômicos e sociais envolvidos, reduz a isonomia a uma categoria jurídica instrumentalizada a serviço da manutenção de privilégios remuneratórios.

Uma dimensão fundamental da igualdade como princípio jurídico nas constituições modernas é a que cria expectativas legítimas de neutralização do exercício de pretensões fundadas no prestígio de caráter pessoal ou do grupo[5], como forma de debilitar o Estado de Direito. Em função disso, por exemplo, um artista não deve ganhar um concurso porque é filho de um mecenas; um rico empresário não pode ter direito a mais votos no sistema eleitoral que um pobre desempregado; um servidor público não deve ser promovido porque tem relações próximas com determinado político, do mesmo modo que de agentes políticos constitucionalmente investidos de jurisdição não é de se esperar o uso do poder para aumentar seus próprios vencimentos ou de seus pares. Se isso ocorre, a mensagem enviada a todos é a de que o adequado funcionamento das instituições ainda encontra limites estruturais frente à manutenção de posições sociais fixas, geralmente sustentadas pela aliança entre poder político e econômico.

Essa é uma consideração a ser contabilizada na análise sobre o significado da isonomia entre as carreiras e a previsão constitucional de autonomia orçamentária do Poder Judiciário e do Ministério Público, que não são uma carta branca para a aprovação de benefícios incompatíveis com o subsídio, nem uma espécie de curinga utilizado seletivamente para se apropriar de parte significativa do erário, sem que restem afetadas as regras do jogo.

Quando o Supremo Tribunal Federal, sobrevalorando o interesse corporativo de associações profissionais de membros do poder que ele próprio representa, produz decisões que põem em xeque o seu papel na proteção da igualdade entre os cidadãos, não vulnera apenas a vedação de tratamento desigual no Estado de Direito, mas a sua legitimação como instituição comprometida com o amplo acesso aos direitos fundamentais.

 

 

[1] A referência aqui se dirige às situações em que a racionalidade de um determinado subsistema social é substituída indevidamente pela de outro, de modo a estabilizar, no nível das expectativas normativas, a inviabilidade do funcionamento do sistema de acordo com seu próprio código. Cf. NEVES, Marcelo (2011) A constitucionalização simbólica. São Paulo: Martins Fontes, p. 146 ss.

[2] Até agosto de 2013 já tinham instituído o auxílio os seguintes estados: Acre, Alagoas, Amazonas, Amapá, Bahia, Ceará, Maranhão, Minas Gerais, Mato Grosso do Sul, Pará, Paraíba, Paraná, Pernambuco, Piauí, Rio Grande do Norte, Rio de Janeiro, Rondônia, Roraima, Santa Catarina, São Paulo, Sergipe e Tocantins.

[3] Sobre essa temática, vide artigo “O topo da distribuição de renda no Brasil: primeiras estimativas com dados tributários e comparação com pesquisas domiciliares, 2006-2012” de Marcelo Medeiros, Pedro Souza e Fábio Castro e outros, disponível em http://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=2479685.

[4] A exemplo do PP n. 0002809-70.2012.2.00.0000 formulado pela ANAMATRA e o PP n. 0005069-57.2011.2.00.0000 da AJUFE.

[5] Cf. LUHMANN, Niklas (2010). Derechos fundamentales como institución: aportación a la sociología política. Ciudad de México: Universidad Iberoamericana, p. 287.

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