Ativismo e autocontenção no STF em debate: entrevista com Flávia Santiago Lima

O Crítica Constitucional entrevista Flávia Santiago Lima, professora da Universidade Católica de Pernambuco, que publicou recentemente sua tese de doutorado no livro Jurisdição Constitucional e Política: ativismo e autocontenção judicial no STF.

A conversa trata de judicialização da política e ativismo judicial do Supremo Tribunal Federal, da influência do constitucionalismo norte-americano no debate brasileiro, da relação que a academia estabelece com a jurisdição constitucional e da necessidade de incorporação da abordagem empírica na pesquisa jurídica, entre outras questões.

 

  • Você poderia descrever um pouco sobre a sua trajetória acadêmica, interesses de pesquisa e a razão que a levou a estudar o tema do ativismo judicial? 

Meu interesse na pesquisa foi viabilizado ainda na graduação na Faculdade de Direito do Recife (UFPE), quando tive a oportunidade de participar do Programa de Iniciação Científica, sob a orientação do Prof. George Browne, cujo tema era o Pragmatismo norte-americano. Também fui Monitora de Teoria Geral do Estado/Ciência Política e Hermenêutica Jurídica. Faço questão de salientar os programas porque são fundamentais para a formação de pesquisadores.

Minha dissertação de mestrado trata da judicialização da política, na descrição do fortalecimento das instituições judiciais, em decorrência da previsão normativa e da incorporação do discurso jurídico às dinâmicas dos atores políticos – potencializados por uma doutrina jurídica que via no Direito e suas instituições um caminho para “efetivação das promessas modernas”. Ali, tentei mostrar que já estava em curso uma redefinição do arranjo jurídico-político da separação de poderes no Brasil após 1988.

A pesquisa do doutorado, defendida em 2013 e publicada agora, é uma continuidade desse projeto, com um objeto específico: as respostas dos tribunais, sobretudo do STF, às demandas encaminhadas. Como, dentre as possibilidades de descrição do exercício da jurisdição constitucional, foi estabelecida uma espécie de dicotomia entre ativismo x autocontenção judicial, foi inevitável tentar desvendar o sentido destas expressões e qual a utilidade dessa discussão para a Teoria Constitucional.

  • O ativismo judicial tem sido objeto de crescentes estudos após a Constituição de 1988, e uma tendência inicial de entusiasmo em relação ao papel do Judiciário em interferir no sistema político para garantir direitos parece agora ser acompanhada por uma corrente de críticos. Qual a sua opinião sobre o fenômeno?

Realmente, está em curso a mudança de percepção quanto à atuação do poder judiciário na garantia da pauta de direitos da Constituição de 1988.

Logo após a promulgação, havia uma reticência de juristas das mais diversas inclinações políticas. Os progressistas se voltavam às teorizações em torno do Direito Alternativo ou “Uso Alternativo do Direito”.

Na segunda metade dos anos 90, tivemos o que denomino de “adesão ao projeto constitucional”. A defesa de um papel proativo ao judiciário, com especial atenção ao STF, é visualizada em esforços para a construção de uma dogmática constitucional, na identificação com a proposta do neoconstitucionalismo ibérico. São sintomáticas deste período a defesa das teorias concretistas do mandado de injunção, da proteção dos direitos sociais pela via judicial e tantas outras construções. O STF era conclamado a assumir sua função de defesa da Constituição e dos direitos.

Neste contexto, é Interessante notar que o termo ativismo judicial foi incorporado ao debate brasileiro na segunda metade dos anos 2000 e ganhou substancial reforço nos primeiros anos desta década, sempre acompanhada por um senso crítico, como parece ser um fator agregado à noção.

Tenho algumas impressões sobre a questão, que articulei no livro.

A relevância do STF é decorrência do aparato normativo – Constituição de 1988 e Emendas, além da legislação infraconstitucional – em que, paulatinamente, foram ampliadas e concentradas as competências decisórias no tribunal, em detrimento das vias ordinárias.

A pretensão de ocupar certo protagonismo da discussão constitucional, acompanhada da constante afirmação do monopólio da “última palavra” e de forte presença nos meios de comunicação foram os propulsores da impressão generalizada de que o STF é ativista.

As atenções da comunidade jurídica e acadêmica voltaram-se aos julgados do tribunal, criticado pelos critérios e métodos empregados em seus processos decisórios e por sua disposição em interferir na atividade dos demais poderes, sobretudo no legislativo.

Já as pesquisas empíricas, se não confirmam a tese de um STF ativista no controle abstrato, pelo quantitativo de declarações de inconstitucionalidade, também não mostram um quadro dos mais favoráveis, pois o protagonismo do tribunal não está necessariamente atrelado à garantia dos direitos fundamentais.

Assim, a discussão do ativismo é contemporânea à aproximação da comunidade jurídica aos processos deliberativos e decisões do STF, oportunidade de avaliar as expectativas que dirigiu ao Poder Judiciário.

  • Por que você escolheu tratar o tema a partir da evolução dos debates sobre ativismo na doutrina constitucional norte-americana e qual o impacto que esses estudos têm na prática institucional do STF?

Em verdade, o debate norte-americano influenciou meu trabalho por duas vertentes.

Inicialmente, na caracterização das interações que a doutrina constitucional estabelece com a atividade da Suprema Corte nos Estados Unidos. As noções de ativismo e autocontenção surgiram naquele sistema, de modo que me pareceu adequado fazer o resgate das condições e situações específicas em que essas expressões foram utilizadas. Se eu defendo que ativismo e autocontenção espelham um discurso jurídico construído “a partir” e “voltado às” relações de poder em que o exercício do controle de constitucionalidade se insere, me pareceu adequado descrever a história de tribunal que julgou casos como Brown v. Board of Education, amplamente celebrados, mas também prolatou decisões como Scott v Sandford e Bush v Gore, sempre mencionadas por seus equívocos. E, claro, quais as respostas oferecidas pela Teoria Constitucional para estas questões.

Outro ponto foi a aproximação com a judicial politics, que construiu um aparato importante para entender as condições do exercício da jurisdição e, assim, a afirmação ou não de ativismo judicial. A conjunção entre teoria normativa (direito) e positiva (política) é um dos pontos principais do livro e tem nítida inspiração da discussão que já acontece nos Estados Unidos, a partir de expoentes como Cass Sunstein, Barry Friedman, Mark Tushnet, Frederick Schauer, Keith Whittington e outros.

Estes estudos, sobretudo na defesa da necessidade da apreciação dos dados empíricos como um dos fundamentos para a análise jurídico-teórica, são pontos muito importantes do trabalho.

Mas não é possível falar de uma incorporação deste aparato teórico na prática do STF, ao meu ver. O Ministro Luís Roberto Barroso é conhecedor deste debate e publicou textos sobre o tema. Como vivenciamos um momento em que as contribuições dos constitucionalistas norte-americanos são estudadas nos programas de pós-graduação e as pesquisas empíricas são desenvolvidas em distintos centros, acredito que seja uma questão de tempo.

  • Há uma certa confusão entre os termos “judicialização da política” e “ativismo judicial” nos debates entre estudiosos do papel do Poder Judiciário no Brasil. Como você trata essa questão no seu livro?

A identificação é natural, porque são conceitos relacionados, mas é possível traçar distinções.

A judicialização da política é um conceito operacional que se refere à nova dinâmica entre as instituições judiciais e ambiente político, que remonta à década de 90. Num momento inicial, a partir do trabalho de Tate e Vallinder, propõe-se a análise das condições que permitem o processo de canalização das expectativas políticas ao judiciário e suas repercussões para estes atores. A discussão abarca, assim, aspectos institucionais-normativos, mas também os interesses específicos dos envolvidos em buscar o judiciário. Estes podem ser os mais diversos: a invalidação de uma política, a mera obstrução ou apenas o registro da discordância com a medida adotada, para angariar apoio político, entre outros. Outras pesquisas posteriores aprofundam o debate das causas e consequências destes processos.

Já o ativismo judicial é um termo surgido nos anos 40 nos Estados Unidos, que trata das respostas dos tribunais às demandas judicializadas. É uma descrição, mas também uma apreciação das decisões judiciais e da atuação de seus membros. Seguramente, a oportunidade de sucesso na via judicial constitui um incentivo para o ajuizamento de ações. Nesse ponto, o ativismo judicial pode aprofundar o processo de judicialização, mas lidamos com questões diferentes.

  • Seja no Brasil ou nos Estados Unidos, muitas das críticas ao ativismo judicial partem do próprio engajamento político de quem as formula como forma de manifestar a reprovação sobre uma determinada decisão da Corte, o que reforça a sensação de que “ativista é a decisão com a qual não se concorda”. Mas decisões que frustam a efetividade de direitos fundamentais não costumam ser tachadas como ativistas, embora também impliquem em uma avaliação do Tribunal sobre a política. Levando isso em conta, podemos acreditar que há um critério hábil, doutrinário ou jurisprudencial, para definir posturas ativistas ou de autocontenção do STF? 

Esse é uma das grandes questões que devem ser enfrentadas na discussão em torno do ativismo judicial. E da autocontenção também. A imputação de ativismo constituiria uma crítica à decisão judicial, ao juiz e, em maior grau, à própria composição do tribunal num dado período.

Deste modo, ativismo corresponderia à uma espécie de desconformidade com os cânones normativos e doutrinários vigentes para o exercício da função judicial, que numa interpretação mais otimista, defendo que seriam contingentes e construídos a partir das decisões anteriores do tribunal. E, claro, as impressões quanto à garantia dos direitos e proteção das minorias, ainda que numa perspectiva contramajoritária, são justificadas por essas teorizações.

Como solução para o impasse, muitos apresentam a via da pesquisa empírica, com a análise da quantidade de vezes em que o tribunal invalida os atos dos demais poderes, como forma de atrair uma dimensão operativa ao debate. Estes e outros dados são muito importantes, pois ajudam a entender o que se passa no tribunal.

O principal ponto do meu trabalho é a construção de uma abordagem que contemple as discussões empírica e jurídica, na avaliação das interações que um tribunal estabelece com as demais instituições.

As decisões judiciais têm consequências sobre os outros ramos de governo e no próprio poder judiciário. É o que denomino de ativismo institucional externo e interno, respectivamente. Mas não podemos esquecer que estas relações são intermediadas pelo discurso jurídico.

Os dados devem ser considerados, mas os temas, técnicas e modos de exercício da jurisdição constitucional são relevantes para a efetiva aproximação ao que o tribunal faz, o que é instrumental para a teoria jurídica. Por isso, proponho que, além da pronúncia da inconstitucionalidade, deve-se levar em consideração questões como o estabelecimento de critérios para a atuação posterior de legisladores e administradores, a afirmação da cláusula de supremacia judicial e outros, que representam o interesse de construir ou fortalecer um papel protagônico na ordem constitucional.

  • Onde e como é possível adquirir a sua obra? 

Meu livro foi publicado pela Editora Juruá e pode ser adquirido no site da editora (http://www.jurua.com.br/shop_item.asp?id=23637) e nas livrarias.

 

 

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